Novo livro conta como Charlie Wilson canalizou milhões para afegãos que lutavam contra a URSS
Na manhã de 11 de setembro de 2001, Charlie Wilson admirava a vista de Washington do terraço de sua casa quando o telefonema de um amigo interrompeu seu ritual matutino antes de ir trabalhar: “Sua TV está ligada?” Wilson, ex-senador agora trabalhando como lobista, sentou-se para assistir, estarrecido, aviões de passageiros desviados de suas rotas transportando os EUA para o epicentro de uma nova e estranha guerra.
Inicialmente, Wilson não relacionou – e até hoje resiste em fazê-lo – aquela trágica notícia com uma outra, que vira no início do verão de 1980. O então deputado pelo Texas deixava o plenário da Câmara quando a máquina de telex da Associated Press imprimia um telegrama procedente de Cabul. Wilson parou para ler a reportagem, que descrevia como os combatentes afegãos tentavam resistir, enquanto as forças soviéticas ocupavam seu país.
A imagem de bravos guerreiros enfrentando o colosso militar soviético com armas rudimentares, na longínqua paisagem dos desertos e montanhas do Afeganistão, capturou a fantasia de Wilson, um ferrenho anticomunista com entusiasmo juvenil por guerras, aventuras e causas românticas. Recém-nomeado membro da Subcomissão de Apropriações de Defesa, ele ligou para o funcionário do órgão que cuidava de “apropriações negras”, ou verbas para a CIA:
- Quanto estamos dando para os afegãos?, perguntou Wilson.
- Cinco milhões.
- Dobre.
Começava o longo e profundo engajamento do congressista texano na causa afegã. Ao longo de uma década, esses US$ 10 milhões se multiplicariam muitas vezes. Com emendas de última hora e negociações de bastidores, Wilson foi responsável por colocar nas mãos dos guerreiros afegãos centenas de milhões de dólares em dinheiro, mísseis antiaéreos portáteis e fuzis-metralhadoras de última geração, bem como fartíssima munição.
Não há novidade no fato de que os EUA, ajudados pela Arábia Saudita (que pôs um dólar de contrapartida para cada dólar americano) e pelo Paquistão (que entrou com acesso ao território, inteligência e contatos com os chefes de clãs afegãos), converteram esses combatentes maltrapilhos nos espetaculares mujahedin que expulsaram os soviéticos. Entretanto, no livro Charlie Wilson’s War (A Guerra de Charlie Wilson), recém-lançado nos EUA, o jornalista George Crile descreve a faceta desconhecida dessa que, segundo o subtítulo do livro, é “a maior operação secreta da história”.
Sua engenharia e seus resultados são tão improváveis quanto os personagens dessa história. A começar por Wilson, mais conhecido por seus escândalos com mulheres e bebedeiras do que por projetos de lei e debates importantes no Congresso. Por sinal, foi uma socialite texana, Joanne Herring, que fez Wilson ampliar seu interesse pelo Afeganistão. Joanne, mulher do magnata do petróleo Bob Herring, fora nomeada, no fim dos anos 70, cônsul honorária do Paquistão em Houston, em decorrência de contatos do casal com o governo paquistanês. Em 1980, ela ficou viúva e foi resgatada da depressão por Wilson. Entre os pontos em comum do par estava o exótico interesse pelo Afeganistão. E coube a Joanne convencer Wilson de que seu gesto de US$ 5 milhões não estava à altura nem do que estava em jogo no Afeganistão nem do seu viril poder de engajamento.
Os amigos paquistaneses de Joanne organizaram uma viagem de Wilson para o noroeste do Paquistão, na fronteira com o Afeganistão, reduto da etnia pashtun. Ali, onde se formavam os primeiros campos de refugiados afegãos, o congressista americano teve contato direto e se encantou definitivamente com a tenacidade do povo afegão. Num hospital do Crescente Vermelho, viu um garoto cuja mão tinha sido arrancada por uma mina russa em forma de borboleta, parecendo um brinquedo. Um jovem que pisou numa mina terrestre russa lhe explicou que estava orgulhoso de seu sacrifício e só lamentava que seus pés não fossem crescer outra vez para que ele pudesse voltar para combater os russos. Essas histórias encheram Wilson de revolta e compaixão.
O congressista doou meio litro de sangue no hospital e, quando se ofereceu para levantar milhões de dólares em ajuda humanitária para os refugiados, recebeu uma resposta que só fez aumentar sua admiração por aquele povo. Um líder tribal lhe explicou que não queriam alimentos nem remédios, mas armas para derrotar os soviéticos. E foi o que tiveram.
Foi a primeira de uma série de expedições de Wilson em território paquistanês e afegão, nas quais criaria laços estreitos com líderes fundamentalistas como Jalaluddin Haqani, que o congressista descreveu como a “bondade em pessoa”, e que mais para o fim da guerra se tornaria companheiro de Osama bin Laden. Mas o maior beneficiário da generosidade da CIA foi Gulbuddin Hekmatyar, um dos comandantes mujahedin que, depois de expulsar os soviéticos, partiria para uma feroz guerra intestina pelo poder no Afeganistão.
Crile, produtor do 60 Minutes, da CBS, conta que, em janeiro de 1989, quando os soviéticos estavam para deixar o Afeganistão, acompanhou Wilson numa visita ao príncipe Sultan, da Arábia Saudita, ministro da Defesa e irmão do rei. Ao mostrar a Wilson seus aposentos, um assessor do príncipe lhe disse que eram mais luxuosos que os que tinham sido oferecidos a George Bush, então vice de Ronald Reagan. “Bush é só o vice-presidente”, explicou o assessor. “O sr. ganhou a guerra do Afeganistão.” No mês seguinte, o então líder militar do Paquistão, Zia ul-Haq, fundamentalista, recebeu a notícia da retirada soviética com uma frase emblemática: “Charlie did it” (Charlie conseguiu).
A frase reapareceria em 1993 numa tela estendida num auditório da sede da CIA, em Washington. Wilson recebeu ali uma homenagem, durante a qual o então diretor da agência, James Woolsey, disse que, sem a interferência do congressista, “a história poderia ter sido imensamente diferente, e tristemente diferente”.
Mas, afinal, o que Wilson conseguiu? O valor simbólico da humilhante retirada soviética no Afeganistão, um país pobre, primitivo e pouco populoso, foi muito além do revés militar. A derrota desnudou as enormes precariedades que fragilizavam o império soviético, desmistificando seu poderio bélico. O Afeganistão foi “liberado” em fevereiro de 1989; em agosto, o movimento de contestação liderado por Lech Walesa derrubou a ditadura comunista na Polônia; em novembro, o Muro de Berlim caiu. O fim da União Soviética representou uma vitória extraordinária para os EUA, dando início ao que o então presidente George Bush chamou de “nova ordem mundial”, sob a solitária hegemonia americana.
Em contrapartida, em decorrência da Guerra do Afeganistão e da luta intestina que se seguiu, nasceu o movimento taleban, de filhos de refugiados afegãos doutrinados em escolas fundamentalistas no Paquistão, bancadas pela Arábia Saudita; e entre os veteranos mujahedin, que vieram de todo o mundo muçulmano lutar a jihad, nasceu a Al-Qaeda, de Bin Landen. Depois de ter recebido maciça ajuda americana, os veteranos se voltaram contra os americanos, pelo fato de os EUA terem estacionado tropas na Arábia Saudita, profanando, segundo eles, a terra sagrada do Islã, na primeira Guerra do Golfo (1991).
Entre o telegrama de Cabul e as imagens do WTC em chamas, Wilson percorreu um longo percurso. Numa ponta, ajudou a desmantelar o grande inimigo dos EUA. Na outra, ajudou a criar seu novo grande inimigo. Entre um feito e outro, Wilson, hoje com 70 anos, compreensivelmente dá mais ênfase ao primeiro. “Eles (os mujahedin) removeram a ameaça com a qual todos íamos dormir todas as noites, a da eclosão da 3.ª Guerra”, realça. “E ninguém até hoje lhes agradeceu por isso.” É provável que jamais agradeçam.