Em seu primeiro emprego, um recém-formado de 23 anos foi encarregado de comprar material de rotina para abastecer o escritório da firma.
Fez a cotação e escolheu o fornecedor pelos critérios do melhor preço e qualidade. Quando foram fechar o negócio, o vendedor lhe perguntou: “E como eu te pago os 10%?”
“Que 10%?”, perguntou o rapaz. O vendedor explicou que, pela praxe, ele tinha direito a comissão por tê-lo escolhido. O novato, entre aturdido e ofendido, pediu que ele desse o desconto no preço da compra, enquanto o vendedor o olhava com a expressão de quem constata estar diante de um trouxa. A compra dava R$ 35 mil. O rapaz ganhava R$ 1 mil por mês. A “comissão” representava três meses e meio de salário. “Até que dá vontade de pegar”, confessa o garoto, já dispensado da firma.
Corrupção e fraude são palavras que o imaginário popular vincula ao setor público. Mas os especialistas garantem que essas práticas são mais disseminadas nas empresas privadas. “A corrupção está mais institucionalizada na iniciativa privada do que no setor público”, avalia Clóvis Madeira, diretor de auditoria da BDO Directa Auditores.
Às vezes, ela parece até imitá-lo. O investigador Marcelo Gomes encontrou, numa multinacional, um caso semelhante ao do juiz Nicolau dos Santos Neto, com seu fórum de R$ 169 milhões, embora em escala menor: seus gerentes locais, estrangeiros, diziam à matriz ter investido US$ 9 milhões numa fábrica, que na verdade não passava de um precário galpão inacabado.
No início dos anos 90, quando Marcelo Gomes era chamado para investigar fraude numa empresa, o máximo que costumava encontrar eram desfalques de R$ 500 mil. “Hoje, nos chamam quando acreditam que está em R$ 300 mil, e descobrimos que chegou a R$ 1 milhão. Quando pensam que é de R$ 1 milhão, já está em R$ 3 milhões.”
Com base em 43 casos em que trabalhou nos últimos anos, Marcelo Gomes, sócio-diretor da GBE Peritos e Investigadores Contábeis, estima que as fraudes signifiquem desfalque médio de 6% do faturamento das empresas. O patamar é o mesmo nos Estados Unidos, segundo a Association of Certified Fraud Examiners, e de 7% na União Européia.
Embutido no preço – Os desvios sensibilizam mais quando envolvem dinheiro público porque há uma ilusão de que são só esses que atingem o bolso coletivo. Mas fraude e corrupção entram no preço do produto ou do serviço, quando dá para aumentá-lo; quando não dá, acarretam diminuição das vendas, queda na arrecadação e desemprego. Sem falar nos acionistas e empregados diretamente atingidos em seus rendimentos e salários.
O setor de compra e vendas está tradicionalmente associado à corrupção. Mas ela ocorre em todas as áreas das empresas: na contratação de transporte, no depósito e no almoxarifado, no pagamento de contas e tributos, nas operações financeiras, na confecção da folha de pagamento, na transmissão eletrônica de informações.
Não há empresa imune à fraude. “Isso só ocorreria onde ninguém tivesse autonomia para tomar decisão”, teoriza James Wygand, presidente, para o Cone Sul, da empresa britânica Control Risks Group.
A ortodoxia da administração de empresas prescreve a exigência de três assinaturas de áreas diferentes para autorizar uma operação, como garantia de boa margem de dificuldade na execução da fraude. “Já investiguei caso com 16 envolvidos”, sorri Wygand. E o que pode unir tanta gente? Um grau exacerbado de rivalidade entre patrão e empregado. “Se é ‘nós contra eles’, esse ‘nós’ pode ser numeroso”, observa Wygand.
Várias coisas concorrem para que um empregado deixe de pensar que o que é bom para sua empresa é bom para ele. A drástica redução de pessoal e a alta rotatividade nas empresas – em busca de competitividade – romperam elos de longo prazo que os empregados mantinham com elas. O trauma da demissão – própria ou do ocupante da cadeira ao lado – inoculou ressentimento e cinismo nos empregados.
Os mais afetados pelas demissões do que ficou conhecido como downsizing, a eliminação de camadas hierárquicas, foram os ocupantes de cargos de gerentes, que dispõem da capacidade intelectual e dos meios práticos para, em seu próximo emprego, fazer o pé de meia antes da demissão seguinte ou simplesmente vingar-se da categoria indiferenciada dos patrões.
Pesquisas nos EUA mostram que as chances de os diretores se envolverem em crimes contra as empresas são 4 vezes maiores do que os gerentes e 16 vezes maiores do que os funcionários do chamado chão de fábrica. Em 97% dos 43 casos de fraude comprovada investigados por Marcelo Gomes, houve envolvimento de gerentes ou diretores.
Enquanto essa mentalidade se instaurou entre os empregados, a cultura de muitas empresas, sobretudo familiares, continuou mais ou menos intacta, com os patrões depositando nos seus transitórios gerentes e diretores quase o mesmo grau de confiança que seus pais e avós depositavam naqueles que passavam a vida toda trabalhando na firma. Confiança que se traduz em autonomia de decisão e frouxidão no controle.
“Se você não tiver controle, as pessoas descambam”, resume o consultor Stephen Kanitz. A melhor prevenção contra a fraude é a auditoria interna, um trabalho cotidiano de acompanhamento.
Tecnicamente, o downsizing, ao cortar camadas de gerentes, também eliminou algumas etapas de controle, que poderiam deter falcatruas. O mesmo ocorreu com outro recurso destinado a reduzir gastos: a terceirização, pela qual as empresas entregaram essas etapas a outros.
Mas não é só a ocasião que faz o ladrão. “O ambiente da empresa é um fator preponderante”, assegura Eduardo Sampaio, presidente no Brasil da Kroll, que presta consultoria sobre gerenciamento de riscos. Empresas que corrompem fiscais para sonegar impostos, que degradam o meio ambiente ou que instruem seus funcionários a fazerem o que for preciso para ganhar um contrato estão mais expostas a golpes de seus empregados.
Caixa 3 – Marcelo Gomes conta o caso de uma loja de roupas cujo gerente deu a seguinte instrução à funcionária do caixa: quando a venda de um dia ultrapassar R$ 3 mil, passe para o caixa 2. Com o tempo, a funcionária criou um caixa 3. Para ela. O chamado telhado de vidro inibe os patrões de levar adiante acusações contra empregados, que podem revelar seus podres também.
O tema acaba envolto em sigilo, ainda, pelo receio dos empresários de exporem as vulnerabilidades de sua companhia, e o fato de lhes terem passado a perna. “Você manteria a conta num banco que divulgasse desfalques freqüentes por ele sofridos?”, pergunta Ricardo Balkins, responsável pela área de gestão e controle de riscos de negócios da Deloitte Touche Tohmatsu.
Mas a falta de informação não protege apenas a imagem das empresas: resguarda também os fraudadores. Segundo Marcelo Gomes, há quadrilhas atuando por setor. Diretores levam seus subordinados junto, para aplicar golpes semelhantes noutras empresas. Há troca informal de informações entre empresários de alguns setores. Mas nem a lei permitiria ir muito além disso.
“É garantia constitucional que ninguém será considerado culpado até trânsito em julgado da sentença”, adverte o delegado Mauro Marcelo de Lima e Silva, especialista em investigações de fraude e corrupção. “Com base nessa presunção de inocência, seria uma violência um eventual cadastro de ‘funcionários-problema’.”
E não é nada fácil provar esse tipo de crime, concordam os investigadores, embora, no ambiente fechado de uma empresa, na vizinhança ou no círculo de amigos, alguém enriquecendo depressa demais nunca passe despercebido.