Fundindo bolivarianismo com modelo revolucionário dos anos 60, discurso chavista tem sempre alcance supranacional
CARACAS
Em 1983, o então capitão do Exército Hugo Chávez, que conspirava no interior das Forças Armadas, decidiu fazer uma aliança com guerrilheiros civis para tentar tomar o poder. Chávez entrou em contato com o Partido da Revolução Venezuelana (PRV), por meio de seu irmão, Adán, que militava nele.
Fundado pelo líder guerrilheiro Douglas Bravo, o PRV era uma dissidência anarquista e utópica do Partido Comunista, e buscava construir um modelo local de sociedade, inspirado na cultura indígena e nas teses do “libertador” Simón Bolívar, tratado com devoção mística. Bravo e Chávez, ambos comunistas desde meninos, fundaram o Movimento Bolivariano Revolucionário 200 (MBR-200) – referência ao bicentenário do nascimento de Bolívar.
A aliança durou até 1991, pouco antes da tentativa de golpe de fevereiro do ano seguinte, em que Chávez ganharia projeção nacional. “Nós do PRV achávamos que o povo e o quartel tinham que ir juntos ao palácio”, recorda Bravo, hoje com 75 anos. “Eu discutia com Chávez: ‘Se o quartel vai só e deixa o povo, sempre haverá a tendência de converter-se em ditadura’.” Chávez optou por uma conspiração puramente militar, com o plano de chamar os civis depois, para ajudar a governar.
Mas as idéias centrais do PRV e do MBR-200 continuam nítidas em seu discurso, em suas ações e na reforma constitucional que vai hoje às urnas. Por exemplo, no ímpeto anarquista de eliminar o Estado. Ao explicar a criação dos conselhos populares, que substituem as formas de representação da democracia convencional (parlamentos, sindicatos, entidades estudantis, etc.), Chávez diz: “Aqui, estamos inventando nosso modelo. É o povo assumindo o Estado burocrático, corrupto, ineficiente.”
O desprezo se estende ao Estado-nação. Fundindo o bolivarianismo com a identidade indígena, o discurso do presidente venezuelano tem sempre um alcance supranacional. O “por que não te calas?” do rei Juan Carlos da Espanha, por exemplo, serviu para ele repetir incansavelmente: “Ele falou com a soberba de 500 anos do colonizador europeu. Mas sabem por que não me calo? Porque a minha voz é a de milhões de índios oprimidos ao longo de séculos.”
A aliança com Evo Morales, da Bolívia, um aimará que cresceu numa região quétchua, e que Chávez patrocina com petrodólares e promete defender militarmente de um eventual golpe, é a síntese dessa ideologia. Mas a Bolívia tem outros significados. Em primeiro lugar, se a Venezuela quer se projetar como potência energética, a Bolívia, com o seu gás, torna-se um complemento importante. Os venezuelanos têm reservas de gás, que por sinal a Petrobrás está prospectando no Golfo da Venezuela, mas não em volume expressivo.
Além disso, assim como Fidel Castro e Ernesto Che Guevara, Chávez também acredita que uma revolução na América do Sul tem de se propagar a partir da Bolívia, por sua posição central no subcontinente. Na visão do analista político Héctor Pérez Marcano, Chávez está seguindo a “estratégia continental” de “exportação da revolução” desenhada por Fidel nos anos 60. “Vemos o poder dos petrodólares, na Bolívia, no Equador, na Nicarágua e até no México”, diz Pérez Marcano, que está lançando o livro A Invasão da Venezuela por Cuba.
Onipresente, o presidente venezuelano evitou a moratória da Argentina, comprando títulos no valor total de US$ 4,2 bilhões, financia a construção de casas populares no Peru e faz incursões até no Brasil. A PDVSA doou R$ 1 milhão para a escola de samba Unidos de Vila Isabel, do Rio, celebrar as proezas bolivarianas no carnaval do ano passado. Várias entidades de inspiração bolivariana têm surgido no Brasil, enquanto outras já existentes há mais tempo abraçam a causa. Junto com dezenas de entidades de toda a América Latina, elas firmaram um manifesto em favor da reforma constitucional, publicado na edição de sexta-feira no jornal Últimas Notícias, de Caracas.
Emprestaram seu apoio à polêmica reforma o PCB, o Núcleo Ruy Mauro Marini do PDT (RJ), a União da Juventude Comunista, a Federação das Associações de Favelas do Rio de Janeiro (Faferj), a Confederação das Mulheres do Brasil, a Federação Democrática de Mulheres e a União de Mulheres de Manaus.
Dentre as novas entidades, a lista inclui a Casa Bolivariana do Rio de Janeiro, a Escola Bolivariana de Poder Popular do Brasil, o Coletivo de Educação Popular Escolas Bolivarianas do Brasil e os “Círculos Bolivarianos” Subcomandante Marcos (SC), Luísa Mahin (BA), Leonel Brizola (RS) e Paulo Freire.