Reforma concentra poder em Chávez

Se aprovado, projeto de mudança constitucional dará ao presidente instrumentos para governar como ditador

 

CARACAS

A “revolução bolivariana” de Hugo Chávez, que se consuma na reforma constitucional submetida hoje a referendo, tem duas faces que parecem contraditórias, mas na verdade complementam. De um lado, trata-se de uma transformação radical na política, na economia e na sociedade, feita de maneira “pacífica”. De outro, ela tem todas as características de uma preparação para a guerra.

Do ponto de vista político, o presidente da República, no caso Chávez, passa a concentrar praticamente todo o poder. A alternância, um forte limitador, no tempo, do poder de todo governante, deixa de ser necessária. O mandato presidencial se estende de seis para sete anos e não há mais restrições para reeleições. O poder dos governadores e prefeitos eleitos democraticamente fica prejudicado pela prerrogativa do presidente de, por meio de decreto, criar cidades e províncias federais, administradas por pessoas nomeadas por ele. As assembléias estaduais e câmaras municipais, também eleitas democraticamente, passam a dividir o poder com conselhos comunais, que receberão verbas diretamente do governo central – segundo Chávez, “no mínimo” 5% do Orçamento, o que, em 2008, representa 7 trilhões de bolívares (US$ 3,2 bilhões). Existem atualmente 22.528 desses conselhos espalhados pelo país, que receberam nos últimos dois anos 5 trilhões de bolívares (US$ 2,3 bilhões). 

“Está se eliminando todo o processo de descentralização do poder nos governos locais, porque há uma relação direta entre os conselhos comunais e o Poder Executivo”, analisa Francine Jácome, do Instituto Venezuelano de Estudos Sociais e Políticos (Invesp). “Acabam os espaços de intermediação.” Além disso, diz a pesquisadora, cria-se um problema de representação: “Esses conselhos não se elegem pelo voto secreto, mas aberto, e podemos prever controle e pressão política por parte do governo.”

A centralização do poder está associada a uma “atomização”, diz Francine, embora à primeira vista isso seja paradoxal. “Não há um árbitro para fazer a coordenação ou estabelecer a interrelação” entre as decisões tomadas pelos conselhos, explica ela. “É muito difícil o Poder Executivo central coordenar tudo isso. Então, cria-se uma espécie de anarquia.” Na realidade, prevê Francine, por causa dessa desarticulação, “esses conselhos vão decidir muito pouco”. De tudo isso, resulta uma “centralização e personalização do poder”.

O interessante é que Chávez chega à mesma constatação, ainda que com outras palavras. “Dizem que vou concentrar o poder nas minhas mãos”, afirmou ele ao longo da campanha. “É o contrário. Eu vou distribuir o poder para você. Com a reforma, você será o centro do poder.” Noutras passagens, Chávez descartou a possibilidade de reter para benefício próprio todo esse poder que os cidadãos venezuelanos lhe vão confiar, se aprovarem a reforma, porque ele é um homem “incorruptível”.

A destituição de ministros do Tribunal Supremo de Justiça torna-se mais fácil, com a redução de maioria de dois terços para metade mais um voto na Assembléia Nacional. O Banco Central perde a autonomia, e a condução da política monetária fica subordinada aos “objetivos superiores do Estado socialista”. 

A reforma abre caminho, também, para um deslocamento da iniciativa privada para o que Karl Marx chamaria de “propriedade coletiva dos bens de produção”. Os conselhos comunais poderão possuir e gerir empresas. Quando anunciou a verba para eles, Chávez explicou que ela seria usada para montar essas atividades econômicas. “Um posto de gasolina rende de 180 a 200 milhões de bolívares (US$ 82 mil a US$ 91 mil) por mês”, calculou ele. “Em vez de dá-lo a uma empresa, damos ao conselho comunal.” 

Num âmbito ainda mais individual, a Constituição deixa de garantir a livre escolha de uma atividade econômica, incluindo, na interpretação de muitos venezuelanos, a própria profissão, que fica submetida à “preponderância dos interesses comuns”. Para completar, o confisco de bens pelo Estado tem efeito antes de uma decisão final da Justiça.

No campo do controle social e da manutenção da ordem pública, Chávez dá às Forças Armadas poder de polícia e afrouxa as condições segundo as quais poderá manter o estado de exceção, já que a Assembléia Nacional não tem mais a prerrogativa de revogá-lo, mas só o presidente. Além disso, deixam de vigorar as garantias de tratados internacionais e do devido processo.

Tenente-coronel da reserva, Chávez faz uma reformulação radical das Forças Armadas. Ele passa a exercer controle político mais direto sobre elas, interferindo nas promoções de oficiais de todas as patentes, e não apenas a partir de coronéis, como na Constituição atual. Chávez institui uma nova Arma, chamada de “Milícia Bolivariana”. Essas alterações se somam ao novo papel que Chávez deu aos reservistas, que passaram a atuar nas mais diversas atividades, como mobilização popular e fiscalização de preços. O efetivo desses reservistas em condição operacional é atualmente de 120 mil, segundo o Ministério da Defesa. Mais 600 mil começarão a treinar no ano que vem. A meta é chegar a 2 milhões.

Chávez também já havia criado uma “Guarda Territorial”, à qual pode ser incorporado qualquer cidadão, para a “defesa da pátria”. Por natureza, diz o analista político e especialista em assuntos militares Alberto Garrido, “essa guarda é clandestina e não sabemos se ela já existe. Seu único comandante é Chávez.”

Em qualquer caso, essas mudanças são condizentes com as hipóteses de engajamento vislumbradas por Chávez, observa Garrido. Uma delas é uma guerra de resistência a uma ocupação americana. Essa guerra pode ser assimétrica, como no caso do Iraque, ou de guerrilha. Chávez já citou várias vezes a guerrilha conduzida por Ernesto Che Guevara nos anos 60, e previu que haveria “vários Vietnãs”. 

 

“Não me pergunte como vai acabar isso”, conclui Garrido. Segundo ele, Chávez já respondeu em 1998, antes de sua primeira eleição, quando lhe perguntaram se achava que a saída para os problemas da Venezuela seria violenta ou pacífica. “Violenta”, respondeu Chávez.

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