Religião ancestral fica longe da política e cultiva alegria, em contraste com Islã
TEERÃ – Numa rua agitada do centro de Teerã, de frente para uma Igreja armênia, encontra-se o Templo Adrian, ou “lugar de fogo”, construído há mais de cem anos. Pela porta, sempre destrancada, entra-se em um pátio calçado, que dá acesso a uma construção ao estilo que identificamos como grego, com colunas redondas e a fachada em triângulo, exibindo os símbolos do zoroastrismo, com figuras humanas que lembram o Egito antigo. Mas nada disso é grego ou egípcio: é persa.
Para se entrar no templo, é preciso lavar as mãos, estar com roupas limpas, e colocar uma touca como as que se usam em salas de cirurgia. A pureza é um valor central do culto zoroástrico. No meio do templo, dentro de uma câmara circundada por umas 40 cadeiras onde se sentam os fiéis para rezar individualmente, no horário que lhes convier, uma chama arde num pedaço de lenha. O fogo, que segundo os que cuidam do templo nunca se apagou, foi trazido há cem anos da cidade de Yazd, na região central do Irã.
Religião ancestral do povo persa, o zoroastrismo ainda conta com cerca de 100 mil adeptos no Irã, que escaparam à islamização do país, a partir do século 7.º. Primeira religião a acreditar na existência de um só deus, chamado de Ahura Mazda, o zoroastrismo tem muito pouco em comum com o islamismo, além de sua base monoteísta.
No Islã, a liberdade de ação está fortemente restrita pelos desígnios divinos. A rigor, tudo decorre da vontade de Alá, e o Alcorão é um texto detalhista quanto ao modo de agir. Já o livro Avestá, escrito por Zoroastro, o fundador da religião, nascido provavelmente em 1768 a.C., define que o homem é livre para julgar o melhor caminho a seguir, e descarta a possibilidade de impor regras a priori. O fundamento ético da religião dá margem ao discernimento individual: bons pensamentos, boas palavras, boas ações.
Ao contrário do Islã – e da intepretação que dele se faz no Irã -, o zoroastrismo não se mistura com política. “A religião não muda. A política muda a cada ano”, explica o mubed (sacerdote) Beman Mehrabani, de 62 anos. Seu sobrenome quer dizer “amabilidade” em farsi. Outros sobrenomes de zoroastrianos significam “amizade”, “amor”, etc. Outra característica semântica dos zoroastrianos é que eles falam um farsi “puro”, dispensando “arabismos”, como a saudação “salam” (paz), por exemplo. Preferem a palavra farsi “dorud” (olá).
Mais um contraste marcante é que o zoroastrismo cultiva a alegria de viver, a prosperidade e o progresso, e desencoraja a tristeza, a penitência, a mortificação, o ascetismo e o luto – que prejudica a ascensão da alma ao paraíso. Já o Islã, sobretudo em sua versão iraniana, é impregnado de martírio e luto. A seita xiita está fundada na reverência a Ali e a Hussein, genro e neto de Maomé, respectivamente, ambos mortos por fiéis que não os aceitavam como sucessores do profeta.
A Ashura, a cerimônia em que os xiitas se autoflagelam para lembrar o martírio de Hussein, é o ponto alto do calendário islâmico no Irã. Em contraste, a grande celebração zoroástrica, o Now Rooz (novo dia), que marca o início da primavera e do ano no calendário solar iraniano, é uma festa alegre, com dança, música, risadas e ousados saltos sobre fogueiras. Bem ao gosto dos iranianos, que são um povo risonho, afetivo e festeiro.
A Revolução Islâmica de 1979 tentou apagar esses resquícios “pagãos” da cultura iraniana, mas não teve sucesso. Iniciado em 21 de março, o Now Rooz segue sendo o mais importante feriado iraniano, estendendo-se por duas semanas, durante as quais o país virtualmente pára.
A esmagadora maioria dos iranianos é muçulmana e xiita, muitos deles fervorosos. Entretanto, o islamismo xiita se assentou sobre o substrato zoroástrico, por sua vez em sintonia com a grande civilização persa, que valorizava a lógica e o conhecimento em detrimento do obscuratismo. Dessa mescla resulta uma síntese curiosa.
“Aqui, você escuta sempre a argumentação de que algo não é lógico”, observa um diplomata ocidental em Teerã, com longa experiência na Ásia. “Esse é um argumento ocidental.” Da mesma forma, continua o diplomata, a sociedade iraniana tem um forte matiz individualista, enquanto na Ásia a regra é o indivíduo desaparecer sob os mantos das normas, da família, da religião e da massificação.
O fundamentalismo não é a única face dos iranianos.
Publicado em O Estadão. Copyright: Grupo Estado. Todos os direitos reservados.