Em funeral, xiitas mostram moderação

Ex-ministro pró-sírio diz ao ‘Estado’ que acampamentos serão erguidos na frente dos prédios do governo

BEIRUTE – De acordo com a tradição tribal, os homens da família de Ahmed Mahmud deveriam atirar em sua cova os seus keffiehs (longos lenços quadriculados), e só amarrar novos na cabeça depois de vingarem a sua morte. Dessa vez, não foi assim. Mahmud, o mecânico xiita de 20 anos morto a tiros num bairro sunita, teve ontem o funeral de um shahid (mártir), mas em vez do grito de jihad (guerra santa), os participantes do enterro procuravam conter os seus instintos.

“Se fôssemos reagir pensando no imediato, haveria confronto”, disse Hassan Sharif, xeque xiita do

sul de Beirute, onde Mahmud vivia. “Temos de pensar no convívio entre os grupos religiosos, no longo prazo.” Sharif, pessoalmente, tem-se dedicado a isso: ele é o representante xiita libanês no Diálogo entre as Civilizações, patrocinado pela ONU. Mas não era só ele que pensava assim ontem no Cemitério Hassan e Hussein, dedicado aos dois netos de Maomé mortos na disputa entre muçulmanos sobre quem deveria ser o califa (sucessor do profeta), que originou a divisão entre sunitas e xiitas.

“A orientação é não recorrer à violência”, disse um militante da Amal, o grupo xiita ao qual pertence a família de Mahmud, que organizava ontem o funeral. “Mesmo que batam neles, não devem reagir”, completou ele, na entrada do velório, sob duas bandeiras da Amal, separadas pelas fotos do aiatolá Ruhollah Khomeini (líder xiita da Revolução Islâmica no Irã), de Mussa al-Sadr (fundador do grupo) e Nabih Berri (seu atual líder e presidente do Parlamento).

A morte de Mahmud e do sunita Mohamed Mustafa Eitani, de 26 anos, um líder do movimento estudantil do Partido do Futuro, do governo, foram os dois incidentes mais graves desde que os grupos xiitas Hezbollah e Amal e seus aliados cristãos reuniram 800 mil pessoas, na sexta-feira, numa manifestação para exigir a renúncia do primeiro-ministro Fuad Siniora. Milhares de opositores continuam ocupando a área em torno do palácio do governo, e prometem ficar até que Siniora caia.

O assassinato de Eitani, provavelmente por militantes xiitas, ocorreu poucas horas depois da morte de Mahmud, provocando temores de uma escalada de violência que poderia conduzir o país de volta a uma guerra civil.

“Não vamos fazer nada”, garantiu o motorista de ônibus Mohamed Fayad, de 42 anos, amigo de Mahmud e simpatizante da Amal. “Nossos líderes não vão permitir nenhum erro. Vamos esperar as negociações políticas.” Seus amigos ao redor acenavam em aprovação.

“Somos disciplinados”, orgulhou-se Hossein Khalife, de 24 anos, meio-campo do time de futebol Al-Raian, campeão libanês, no qual jogam três brasileiros. “Estão esperando nossa reação. Não faremos nada. Não queremos guerra. Só queremos participar de um governo de coalizão nacional.”

Não que o outro lado não seja visto com suspeita, para não dizer hostilidade. “Saad Hariri distribuiu armas”, acusou o militante da Amal que organizava o funeral, referindo-se ao filho do primeiro-ministro Rafic Hariri (morto num atentado a bomba em março do ano passado) e líder do Partido do Futuro.

Os simpatizantes da Amal têm uma versão muito diferente das duas mortes, daquela divulgada pelas autoridades. Segundo eles, Mahmud vinha atravessando o bairro de Cazcaz, predominantemente sunita, em direção a sua casa, no vizinho bairro de Ard Jalloul, acompanhado de suas duas irmãs e cunhados, que por sinal seriam sunitas. Caminhavam calmamente, quando o jovem xiita tomou um tiro pelas costas. Segundo a versão divulgada, Mahmud vinha num grupo de jovens depredando carros e lojas.

Já o autor dos disparos contra o sunita Eitani, pela versão que corria ontem no funeral, seria o seu próprio irmão, que atirou por engano, e não seis ou sete militantes xiitas que o seguiram até a porta de casa, na noite de domingo para segunda-feira, algumas horas depois da morte de Mahmud, como relatou sua família.

Por enquanto, a guerra é apenas de palavras. As lideranças dos dois lados parecem estar tentando mantê-la assim. O Partido do Futuro só divulgou a morte de Eitani depois de seu funeral, restrito à família, na tarde de segunda-feira. A Amal não abriu mão de um enterro de mártir para Mahmud. Mas, por enquanto, o movimento é pacífico.

Com a recusa de Siniora de ceder mais espaço para o Hezbollah e a Amal no gabinete, ou de renunciar, os dois grupos pretendem ampliar a pressão. O ex-ministro da Defesa Abdul Rahim Murad, um sunita pró-Síria que apóia o movimento, revelou ontem ao Estado que eles pretendem armar acampamentos de militantes – como os que estão hoje na área do palácio – na frente de outros prédios do governo e na estrada para o aeroporto. “Para criar mais transtorno”, explicou Murad, cotado para chefiar um eventual governo pró-Hezbollah. “Hoje, eles só governam 500 metros quadrados”, ironizou, referindo-se às salas do palácio onde Siniora e 17 ministros estão confinados desde o início do cerco, na sexta-feira.

Publicado em O Estadão. Copyright: Grupo Estado. Todos os direitos reservados.

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