Xeque e padre unem-se para ajudar refugiados

Muçulmano e cristão esquecem diferenças religiosas e distribuem pão para a comunidade em Marjayoun

MARJAYOUN, Sul do Líbano – Quando a tarde cai em Marjayoun, a desolação aumenta. As ruas se tornam ainda mais desertas, com a aproximação de outra noite fatídica, da qual ninguém sabe se amanhecerá vivo. Pontuada de redutos do Hezbollah e de bases de lançamento de foguetes Katiusha, a região, que se estende do Rio Litani até a fronteira com Israel, é alvo de centenas de mísseis e bombas israelenses todas as noites.

É nessa hora que o xeque sunita Mohammed el-Moghraby e o padre cristão ortodoxo Phillip Habib el-Oukla saem nos seus carros para distribuir pão. Eles estacionam na porta de clubes, escolas e outros centros comunitários seus carros abarrotados do pão trazido do Vale do Bekaa, cerca de 50 quilômetros ao norte daqui.

Então os moradores – aqueles que restaram, que se estima serem a metade – começam a sair dos porões de suas casas e de edifícios públicos, onde se refugiam dos bombardeios há quase um mês. Como os caminhões são considerados alvos pelos aviões israelenses, as cidades do sul, sob pesados bombardeios, sofrem o desabastecimento.

O xeque Mohammed é um dos poucos que se aventuram pelas duas horas de percurso na estrada deserta que liga o Vale do Bekaa ao sul – onde Israel tem disparado no que se move – para levar mantimentos para toda a comunidade. E o padre Phillip o ajuda a distribuir.

É uma parceria insólita, para os padrões libaneses, onde a identidade religiosa é determinante. O xeque e o padre vão juntos distribuir alimentos – e também medicamentos e cobertores, na manhã seguinte, comunidade por comunidade. E são em geral recebidos de forma igual por todos.

“Por favor, conte nossa história”, pede ao Estado o padre Phillip, cuja Igreja São Jorge teve a porta derrubada e as janelas estilhaçadas pelo impacto das bombas, e cujos filhos, de 6 e de 3 anos, brincam, na sacada do seu apartamento, de identificar onde foram os bombardeios. “Não precisa nem dizer nossos nomes, se não quiser. Mas é muito importante saberem que estamos fazendo isso juntos aqui, tratando-nos como irmãos, sem nos importarmos com divisões religiosas.”

Na casa do xeque Mohammed, contígua a sua mesquita, estão estocadas caixas do Comitê Internacional da Cruz Vermelha, pacotes com alimentos não-perecíveis enviados pela Fundação Hariri, da família do ex-presidente assassinado no ano passado, e até dois fardos de arroz Tio João, importados do Brasil e doados por um supermercado no Vale do Bekaa. “Isso vai para Shebaa”, apontam o padre e o xeque, referindo-se à cidade próxima, reduto do Hezbollah bombardeado continuamente.

É difícil saber se essa semente vai vingar no Líbano depois da guerra e falar mais alto que as divisões religiosas, historicamente exploradas por políticos locais e por países da região. Há sinais na direção contrária. Enquanto o padre e o xeque distribuíam pão num bairro cristão, um morador puxou o repórter e confidenciou: “Tudo o que está acontecendo é culpa do Hezbollah”, numa referência à captura de dois soldados israelenses, que desencadeou a fúria de Israel, em 12 de julho.

“A culpa é toda de Israel”, garantiu, na manhã seguinte, o sargento reformado Hussein Abraham Daher, de 82 anos, que perdeu um pé ao pisar numa mina israelense em 1982, quando o país ocupava o Líbano.

“Ninguém manda Israel parar a guerra”, queixou-se Daher, cuja casa na cidade xiita de Khiem, ao lado de Marjayoun, foi destruída pelos bombardeios. Enquanto Daher falava, cinco foguetes Katiusha eram disparados das imediações, contra Israel. “Temos que mandar os palestinos todos de volta para a Palestina”, disse Daher, argumentando que sua presença no Líbano prejudica o equilíbrio demográfico entre xiitas e sunitas (em geral a religião dos palestinos).

“Claro que o problema é Israel”, diz o cirurgião-geral Mouenes Kalakesh, diretor do Hospital Municipal de Marjayoun. “Desde 1948 (quando foi fundado), Israel tem estado contra o Líbano.” O médico xiita interrompe a entrevista para mudarmos de sala, porque a janela e paredes de seu escritório, que dão para fora, estão vibrando muito com o impacto das bombas israelenses.

Assim como o padre e o xeque, Kalakesh tem-se desdobrado para atender a população, independentemente de religião. Desde que começou a guerra, há 28 dias, ele dorme e passa todo o tempo no hospital, enquanto sua mulher e filhos estão na casa deles em Sidon, 50 quilômetros a oeste. Os pais, que moram no vilarejo xiita de Blat, ao lado de Marjayoun, duramente castigado pelos bombardeios, estão em Beirute. O hospital é o maior da região, mas de seus 40 médicos, apenas 8 não fugiram dos bombardeios; dos 55 enfermeiros, restam 20.

Kalakesh diz que os casos mais graves vêm de Farqila, Blida e Hwla, redutos do Hezbollah perto da fronteira com Israel. Os irmãos Mohammed Akil Hamond, de 18 anos, e Bussaina, de 19, estavam dentro de sua casa em Farqila, ao meio-dia, quando uma bomba fez o teto desabar sobre suas cabeças. O rapaz sofreu um “trauma importante” na cabeça, diz o médico, além de pequenas lesões em todo o corpo.

Já a garota sofreu um golpe no tórax que a faz respirar com dificuldade, além de ter perdido muita massa de músculos, nervos e veias do braço esquerdo. Um irmão deles teve de ser levado para um hospital de um centro maior. Teve hemorragia cerebral, assim como dois primos. A mãe dos jovens assegura que o apoio ao Hezbollah na cidade é total.

Já o xeque de Shebaa, Abdalla Daakur, que teve a mesquita destruída por bombardeio israelense no primeiro dia da ofensiva, questiona o papel do Hezbollah. “Não há presença do Hezbollah em Shebaa, que é uma cidade sunita, mas ele utiliza a região e as redondenzas para ‘libertar’ as Fazendas de Shebaa”, critica o xeque, referindo-se a um dos pretextos para a morte e captura dos soldados israelenses.

A guerra aguça nos libaneses sentimentos de solidariedade com os compatriotas. Mas será preciso mais que isso para superar velhos alinhamentos entre religião e política.

Publicado em O Estadão. Copyright: Grupo Estado. Todos os direitos reservados.

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