‘Febre Picasso’ chega a Londres com exposição e musical

A Tate Gallery abre hoje mostra com 160 obras do pintor, tema de uma peça que estréia dia 24 no Teatro Hackney Empire

LONDRES – O maior artista do século. É assim que Picasso move-se por Londres, numa megaexposição na Tate Gallery, uma série de documentários no Canal 2 da BBC sobre os mais diversos aspectos de sua vida e trabalho, e o musical Picasso – Uma Noite de Vinho, Mulheres e Música, que começa a ser exibido dia 24 no Teatro Hackney Empire.

A exposição da Tate será aberta hoje e vai até o dia 8 de maio. Sob o título Picasso: Escultor/Pintor, ela reúne mais de 160 esculturas, pinturas, desenhos e cerâmicas do artista, e pretende ser a exposição do ano.

Os curadores John Golding e Elizabeth Cowling levaram quatro para reunir essas obras, viajando pelo mundo inteiro para convencer museus e mesmo a família Picasso a emprestar trabalhos fundamentais do artista. O resultado é uma fabulosa visão da trajetória de Picasso e da própria arte deste século. Pela primeira vez, uma exposição explora em detalhes um aspecto central da obra de Picasso: a relação entre a escultura e a pintura.

Em seu tumultuado percurso estilístico, um dos poucos fatores persistentes foi a obsessão de Picasso com a bidimensionalidade da pintura. O geometrismo de Picasso está em grande parte vinculado à sua convicção de que a pintura devia assumir o fato de que é uma tela plana, e não pretender ser tridimensional. Um dos momentos mais dramáticos dessa obsessão é aquele em que Picasso, já perto de morrer, no início da década de 70, se junta ao norueguês Carl Nesjar, para criar figuras gigantes de concreto que pertencem agora ao Museu Moderno de Estocolmo, interpretando o Déjeuner Sur l’Herbe de Manet.

As esculturas, resultados de esboços de Picasso (expostos agora pela Tate), são achatadas, como se não tivessem saído do papel, como se fossem bidimensionais. Num programa de 10 minutos dedicado a essas esculturas, Nesjar contou à BBC-2 que Picasso sonhava construir uma cidade com suas figuras. Os apartamentos seriam talhados dentro dos gigantes. Caminhando para os 90 anos, Picasso, que não cobrou nada para criar os desenhos, apenas perguntou uma vez a Nesjar: “Quanto tempo essas esculturas vão durar?” O norueguês respondeu que, segundo os engenheiros, cerca de 2 mil anos. “Ótimo”, foi a resposta do inabalável Pablo Picasso.

Na segunda-feira à noite, a BBC-2 dedicou cerca de 20 minutos ao caso da escultura Cabeça de uma Mulher, também incluída na exposição da Tate. No verão de 1909, Picasso viajou para Horta, na Espanha, com sua amante Fernande. Durante a viagem, no entanto, a jovem e bela Fernande contraiu doença, deixando o voluptuoso Picasso preso no apartamento, contrariado, às vezes transtornado. Ao mesmo tempo, o artista decidira avançar na sua concepção de cubismo.

Por essa razões, o rosto e corpo de sua modelo e amada aparecem deformados nas pinturas de Horta. Os traços de Cabeça de uma Mulher e dos outros quadros pintados nessas férias confundem as formas humanas com a geometria das casas, pedras e montanhas avistadas da janela. Para vários críticos, é neste momento que realmente nasce a fragmentação cubista.

No apartamento alugado em Horta, Picasso não tinha condições de esculpir. Mas, ao retornar a seu ateliê em Paris, ele transformou todos os retratos do rosto de Fernande em esculturas. O molde de Cabeça de uma Mulher se partiu depois de Picasso fazer dele duas cópias. Necessitado de dinheiro, Picasso vendeu as duas esculturas ao marchand Ambroise Vollard. Este vendeu 14 cópias da Cabeça, dando origem a uma profusão de cópias não-autorizadas e de imitações.

Hoje há no mundo 23 cópias reconhecidas como autênticas. O mapa dessas cabeças delineia hoje uma espécie de “Quem é quem” no cenário artístico mundial. Em 1989, uma delas foi leiloada por US$ 3 milhões. A partir dessa experiência, Picasso passou a exercer mais controle sobre suas obras, assinando contratos – escritos à mão – com os marchands e compradores.

A concepção de arte de Picasso pode ser abordada por meio de uma história que envolve a revolucionária obra Les Demoiselles d’Ávignon. Segundo o biógrafo Richardson, enquanto pintava o quadro, Picasso descobriu, maravilhado, máscaras africanas no Trocadero. Ao retornar do centro parisiense, repintou duas das cinco mulheres, dando ao quadro um traço primitivista, que acompanharia seus próximos trabalhos.

Picasso freqüentemente reconhecia tótens em suas figuram e disse a outra amante, Françoise Gilot, sobre o impacto do contato que tivera com a arte africana: “Homens tinham feito aquelas máscaras por um propósito sagrado, mágico, como uma forma de meditação entre eles e as forças desconhecidas que os cercavam, de modo a superar seu medo e horror, dando-lhes uma forma e uma imagem. Naquele momento, eu compreendi o que é a pintura. A pintura não é uma operação estética; é uma forma de mágica, de tomar o poder dando forma a nossos horrores, assim como a nossos desejos. Quando percebi isso, sabia que tinha encontrado meu caminho.”

Os verões na praia com suas amantes marcariam definitivamente a vida e o imaginário deste franzino porém insaciável garanhão Anos depois, impedido pelo trabalho ou outras circunstâncias de usufruir de férias como aquelas, Picasso se consolaria por estar em seu atelier em Boisgeloup ou em Paris, perto da odiada esposa Olga (de quem se divorciou só em 1935), pintando ou desenhando Marie-Thérèse na praia.

A apoteose dessa pintura como saudade e devoção ao prazer pretérito está na tela Banhista com Bola de Praia, pintada em agosto de 1932, com base na lembrança de férias passadas quatro anos antes. Como Picasso explicaria mais tarde a Françoise: “Eu pinto do mesmo modo como algumas pessoas escrevem sua autobiografia.”

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