Subiratis perfaz trajeto da modernidade

Filósofo, que faz palestras em SP, embarca no trem do Arte/Cidade e analisa os gloriosos anos 20

O sol da tarde castiga os passageiros na plataforma da fábrica Matarazzo, à espera do Kino Trem. O espanhol Eduardo Subiratis, professor da Universidade de Princeton, enxuga o suor da testa e propõe um recuo tático para a sombra de uma bananeira. Fala de outra viagem, passando por aquela ferrovia mesma, nos gloriosos anos 20. Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade partiram para Minas e no caminho iam fazendo, ela, pequenos desenhos, ele, poemas e outros escritos. Logo no início da jornada, partindo da Estação da Luz, o casal passou por aquela fábrica, símbolo da modernidade brasileira. Agora, o trem do Arte/Cidade refaz o trajeto inicial. Mas para encontrar uma fábrica Matarazzo em ruínas.

O apito do trem chegando interrompe a reflexão de Subiratis. Suas últimas palavras se esvaem no corre-corre para não perder o trem e não encontram concretude sequer no folheto distribuído pelos organizadores. Nele, ficamos sabendo que o Kino Trem é de matriz soviética e prefere remeter-se a Maiakovski, a Malevich e ao cine-verdade de Dziga Vertov. Assim é este País. Mal começou a viagem, lá nem se vão dois parágrafos inteiros e o entendimento é convocado para uma síntese conceitual que dê conta da “doçura” agrária e bucólica, conjugada com o impulso técnico-industrial e seu diálogo com as ferozes vanguardas européias, mais o presente, com suas ruínas pós-industriais e sua globalização, apontando para um futuro tão incerto e imprevisível quanto no início do século. Não estaria aí um autêntico custo Brasil filosófico?

Mas, afinal, o que é a especificidade brasileira? Subiratis ajeita-se na confortável poltrona do Kino Trem e o vento parece que o anima. O autor de Das Vanguardas ao Pós-Moderno (1984), seu livro mais conhecido no Brasil, revira as categorias e acha a contraposição canibalismo-antropofagia, à qual tem recorrido consistentemente. Vamos à sua história preferida, minuciosamente reconstruída em seu El Continente Vacío (1994). Os missionários europeus, nos primórdios da colonização, espantaram-se com a exuberância erótica dos índios. Sua sensualidade natural, livre de culpa, impôs-se instantaneamente como ameaça à ordem cristã européia. Entretanto — e aqui a história assume contornos de parábola —, seria pouco prudente apresentar como ameaça para os europeus um paraíso libidinoso. Optou-se pelo mito do canibalismo, vício pecaminoso a ser debelado a qualquer custo — ainda que o do massacre.

O trem sacoleja um pouco na velha bitola castigada e, de um salto, caímos no fin-de-siècle. Pessimismo, angústia, desilusão. Mas os historiadores não falam da perspectiva de paz e prosperidade que naquele período acalentava o homem comum europeu, alheio às tragédias que o aguardavam? “Não no círculo artístico e intelectual, pondera Subiratis, lembrando o herói da época, Nietzsche, e a epidemia da época, o niilismo. O professor acolhe a ambigüidade: o que contém o futurismo italiano, sendo um lançar-se para um futuro que lhe reserva, sim, a elevação, mas uma elevação encontrada na morte?

As vanguardas européias de início do século, com destaque para o surrealismo e para o dadaísmo, encontraram no conceito de canibalismo uma inspiração para a ruptura com a racionalidade, com a tradição e com os valores estéticos a elas vinculados. Subiratis destaca dois elementos da catarse surrealista: o ímpeto destrutivo na busca do primitivo e o conteúdo consumista de seu fetichismo. O impulso aniquilador manifesto nas vanguardas européias se realizaria nas guerras e nos genocídios deste século. O fetichismo desvelaria, por trás da máscara primitivista, um apetite alegremente assimilado pela sociedade de mercado. Ambos sacralizados no surrealismo. “A fusão do animal e da máquina não é feliz”, ironiza Subiratis, olhando para o que foi este século na Europa.

Subiratis contrapõe esse canibalismo europeu ao movimento antropofágico brasileiro, que o filósofo qualifica de “doce” e “feminino”, além de erótico, criador e natural. Na modernidade brasileira, estaria a síntese de pares inteiramente inconciliáveis na Europa: agrário e urbano, primitivo e industrial, natural e cultural.

Antes que o trem chegue à estação do Moinho Central, é preciso investir contra o filósofo, com uma arma de seu arsenal. O postulado de Hilberseimer sobre a arquitetura moderna, que Subiratis execra em seu último livro, Linterna Mágica (1997), da “redução da forma arquitetônica ao mais elementar e necessário, numa limitação às formas cúbicas e geométricas”, como “elementos fundamentais de toda a arquitetura”, não parece a descrição precisa de Brasília, realização mais contundente do delírio de modernidade no Brasil?

Não para Subiratis, que enxerga em Brasília síntese de “urbanismo moderno e indígena”, natureza e criação humana, no diálogo entre a água, a vegetação e o concreto, suavizado em formas e colunas “femininas e delicadas”. Para o filósofo, professor na Unicamp entre 1985 e 87, Brasília traz uma representação doce, sensual e nada militar” do poder. “Compare com a parafernálla de Washington, com seus símbolos da morte.”

O trem pára. É hora de descer e olhar para a feiúra bonita de São Paulo, através das janelas do moinho em ruínas. E o que o filósofo vê? Um cenário dos despojos da globalização. Aqui, as contradições do sistema econômico, sua riqueza e sua exclusão, estão expostas de maneira crua. “Essa é a cidade real”, em contraposição à cidade européia, cuja “ordem, limpeza, beleza e harmonia” são ilusórias, escondendo os conflitos que em São Paulo se mostram.

O choque de “realidade” do moinho, não só com suas janelas para São Paulo, mas também com suas paredes repletas de inscrições com histórias de estupros, drogas, violência — e prazer —, domina a viagem de volta. O que pode acontecer a um país que se vê obrigado a acolher uma desordem pós-industrial e pós-moderna antes que a ordem industrial e moderna tivesse conseguido se estabelecer e domar a desordem primitiva e pré-colonial? Afinal, há ou não uma diferença básica entre os países do Hemisfério Norte, em que a racionalidade atingiu a hegemonia, e lugares como o Brasil, onde o racional se acomoda mal, acotovolando-se o tempo todo com o primitivo? Há ou não uma diferença importante entre a cidade européia, americana e japonesa, onde a urbanidade reina triunfante, e uma cidade como São Paulo, em que nem o asfalto, pontuado de buracos e “costelas de vaca”, é capaz de se impor sobre o relevo?

Subiratis não vê diferença essencial. “Em Basiléia, Barcelona ou Amsterdã, quando cai uma sujeirinha, vem logo a patrulha limpar, mas a idéia de uma Europa linda, educada, perfeita, é ilusória, uma falsa imagem de ordem e equilíbrio.” As guerras e genocídios do século servem como prova de que a racionalidade não imperou; os atuais recrudescimentos do nacionalismo e do racismo, de que ela não impera.

Voltamos ao binômio canibalismo-antropofagia. Na Europa, a racionalidade se contrapõe aos ímpetos da destruição e, agora, da exclusão. No Brasil, ela esbarra nas muralhas de uma cultura nativa e de uma natureza grandiosa, não de todo aniquiladas. E o que a especificidade brasileira tem agora a oferecer, se, como há um século, olhamos para o futuro com sentimentos dúbios, oscilando entre a prosperidade e a exclusão, a paz e a violência?

Subiratis não tem “o dom da profecia”, mas tem uma proposta. O Brasil pode criar categorias correlatas à do homem natural e cordial. “Essas categorias não servem mais, porque o homem e o mundo mudaram.” Mas pode haver novas, que cumpram o papel que aquelas cumpriram há um século. Ao “canibalismo da Globo”, que engole e torna fetiches os conteúdos culturais, diz Subiratis, contrapõe-se a antropofagia do carnaval, que mantém “o olhar criativo” e é capaz até de “reciclar os produtos banais da televisão e dar-lhes sentido”. É assim que o filósofo acredita que a cultura brasileira pode oferecer uma “presença profunda”, como em Oswald de Andrade, uma “realidade”, para conviver — sem se conciliar — com a “virtualidade colonizadora” da globalização.

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