MST usa o Incra para expandir seu poder

Identificados como os que podem ‘resolver a parada’ com um telefonema, os líderes do MST têm exibido muito mais desenvoltura em passar por cima das normas

EUCLIDES DA CUNHA – A atividade é intensa no lote 34 do Assentamento Nova Esperança. O trator da associação prepara a terra fofa do Pontal do Paranapanema para o plantio de milho, algodão e mandioca, no fundo do lote de 15 hectares. Na frente, perto da casa de tijolos aparentes, já estão plantadas uma roça de mandioca e outra de milho. Rosalina Acorsi está confiante: “Deste lote ninguém vai me tirar.”

Liderança emergente do Movimento dos Sem-Terra em Euclides da Cunha, ela já tinha feito incursões anteriores para obter um lote no assentamento, mas fora barrada pelos técnicos do Instituto de Terras de São Paulo (Itesp). Rosalina não preenche praticamente nenhum dos requisitos para ser assentada: não provém do meio rural, possui loja de autopeças na cidade e tem renda bem superior a três salários mínimos.

Como muitos comerciantes, funcionários públicos, pedreiros e todo tipo de profissionais das cidades, agraciados com lotes em assentamentos de todo o País, que utilizam como sítios de fim de semana ou simplesmente vendem, Rosalina, que ficou viúva em 1997 e ingressou no MST no ano seguinte, corrigiu seu desfavorável perfil socioeconômico: pôs a loja em nome dos filhos, embora mantenha a ampla casa na cidade.

Mas não houve jeito. Os técnicos do Itesp vetaram seu acesso a um lote e aos créditos concedidos aos assentados. “Esse Ronilson (Silva) me persegue, porque sou do MST”, diz ela, referindo-se a um dos técnicos do Itesp em Euclides da Cunha.

Há um mês e meio, Rosalina acreditou ter chegado sua vez quando um lote ficou vago no Nova Esperança: o assentado Pedro Moacir Vestfal, outro quadro do MST, perdeu o direito ao lote depois de arrendá-lo, vendê-lo e ainda fugir, num caminhão, à noite, com o algodão colhido pelo arrendatário. Vestfal, além do mais, foi condenado a dois anos e meio de cadeia por roubo e formação de quadrilha, por sua atuação num acampamento que ficava ao lado do assentamento.

Os técnicos do Itesp, porém, firmaram acordo com o assentado Ademir dos Santos, para que plantasse mandioca no lote, evitando que Rosalina o ocupasse. “Cheguei no lote de manhã, acompanhada do pessoal do assentamento, que me apóia, e encontrei um trator arando o lote para o Ademir”, recorda Rosalina.

Sua sorte começou a mudar no dia 14 de julho, quando o ministro do Desenvolvimento Agrário, Miguel Rossetto, e o superintendente regional do Incra em São Paulo, Raimundo Pires da Silva, foram a Teodoro Sampaio celebrar os 13 anos do MST no Pontal.

O veterano Valter Gomes, líder do MST na Gleba 15, um assentamento de 20 anos, levou o caso às autoridades. Valter é um velho companheiro do superintendente do Incra em São Paulo. Conhecido na região como Bombril, também assentado na Gleba 15, o superintendente é militante do MST e membro da mesma corrente do ministro Rossetto no PT, a Democracia Socialista.

Valter disse ao ministro e ao superintendente que havia uma companheira sendo impedida pelos técnicos do Itesp de ficar com um lote. E que os técnicos haviam sublocado o lote, para auferir lucros. Indignado, Rossetto teria pedido uma sindicância, que foi aberta pelo Itesp, e ainda não concluída.

Rosalina conta que recebeu a orientação do superintendente de ocupar o lote e colher assinaturas no assentamento, para mostrar que tinha o “apoio da comunidade”. Isso foi fácil. Rosalina, 37 anos, com passagens na polícia por roubo de gado, abatido para consumo nos acampamentos do MST e para venda no açougue local, é um desses quadros que comumente se agregam ao movimento, colocando à sua disposição carro e outros recursos preciosos para a logística do grupo.

“Ela sempre esteve presente, sempre nos ajudou muito, para cima e para baixo com a gente de carro, de dia ou de noite”, testemunha, agradecido, Wilson Sérgio da Silva, também militante do MST e acusado de envolvimento em roubo de gado. Ambos alegam inocência.

Das 98 famílias assentadas, mais de 80 assinaram apoiando Rosalina. Ela mandou o documento ao superintendente e espalhou no assentamento: “O Bombril me mandou ficar aqui.”

O superintendente do Incra em São Paulo declarou ao Estado, por meio de sua Assessoria de Imprensa, que “todo mundo será selecionado dentro da lei”. O superintendente tem conhecimento de que Rosalina já havia sido eliminada no processo de seleção e afirmou que o caso dela “está na Divisão Operacional e providências estão sendo tomadas”. E garantiu que “nunca ele ou qualquer funcionário do Incra disse que alguém poderia ficar num assentamento mediante coleta de abaixo-assinado”.

Casos semelhantes, no entanto, se espalham. No próprio microcosmo do Assentamento Nova Esperança, outra militante do MST, Jacira Zanelatto, ocupou um lote “por ordem do Bombril”. Funcionária da Cooperativa dos Assentados do Pontal (fechada por superfaturamento) e, como Rosalina, ativa nos acampamentos do MST, Jacira foi despejada pelos técnicos do Itesp porque não ocupou o lote nem construiu nele uma casa com os R$ 2.500 que recebeu para isso.

Depois da confraternização de 14 de julho, Jacira tomou ânimo e – abaixo-assinado em punho – ocupou um lote que um assentado deixou para outro cuidar. Os dois agora o disputam. “Ele já é 90% meu”, acredita Jacira.

O MST acredita que seus atropelos com o Itesp estão chegando ao fim com a abertura de um escritório do Incra em Teodoro Sampaio. Segundo o Incra, a tarefa do escritório é comprar alimentos dos assentamentos para o programa Fome Zero, e o convênio com o Itesp continuará de pé.

Enquanto expande suas conquistas territoriais nos assentamentos, o MST também vai aumentando sua fatia no orçamento da reforma agrária. Memorando obtido pelo Estado mostra que, de uma única remessa de R$ 614 mil do Ministério do Desenvolvimento Agrário para o Incra de São Paulo, R$ 412 mil foram destinados diretamente para o MST, para “ações de assistência técnica”.

As verbas do governo são distribuídas mediante “planejamento participativo que envolveu técnicos, dirigentes do Incra e dirigentes das organizações dos assentados na tarefa de promover a descentralização destes recursos”, explicou ao Estado o superintendente nacional do Desenvolvimento Agrário, Crispim Moreira, que assina o memorando. Segundo ele, “o programa reconhece as instâncias organizativas que promovem o desenvolvimento dos assentamentos, por exemplo as associações e cooperativas”. Convênios desse tipo, informa Moreira, absorvem R$ 18 milhões.

Nas agências do Banco do Brasil, muitos gerentes que tiveram conflitos com o MST por causa de liberação de créditos temem agora por suas carreiras. “Tem gerente que está em maus lençóis”, conta um gerente do Banco do Brasil no interior de São Paulo. “Muita gente acha que o MST influi nas indicações.”

O poder – real ou imaginário – do MST se difunde em boatos que rondam os seus desafetos. Muitos no Pontal acreditam que o juiz Atis de Araújo Oliveira, que mandou prender José Rainha Júnior e outros líderes do MST por roubo e formação de quadrilha, será removido da Comarca de Teodoro Sampaio por pressão do MST.

Como diria Rosalina, sobre seu inimigo Ronilson: “Ele vai perder o emprego logo, logo. É uma pena. Eu queria que ele ficasse aqui, que eu ia ensiná-lo a fazer o trabalho dele direito.”

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