‘Ele disse que não voltava. Não voltou’, diz mãe de garoto de 17 anos que morreu lutando pelo Hezbollah
YATAR, Sul do Líbano – Os homens levaram os 11 caixões envoltos na bandeira amarela e verde, entoando: “Inta Hezbollah, laka al-shahada” (se você é do Partido de Deus, para você é martírio). Poderia ser apenas um slogan político, uma frase de efeito mecanicamente repetida, um consolo vazio. Não para a família de Ibrahim Saleh, 17 anos, o filho de mãe brasileira que morreu lutando pelo Hezbollah.
“Graças a Deus estou muito bem, muito orgulhosa”, disse ao Estado Saqiba Kourani, mãe de Ibrahim, depois de se despedir ontem do filho, cujo corpo atingido por fragmentos de mísseis foi cortado em pedaços. “Nesse mundo, não tem nada”, continuou Saqiba, nascida em Itapevi (SP) há 43 anos. “A gente acredita que a vida começa no paraíso.”
Dez dias depois de iniciada a guerra (no dia 12 de julho), Ibrahim disse para a mãe e as irmãs que estava indo lutar com o Hezbollah. Seu irmão de 21 anos já estava na guerra – da qual voltaria a salvo. “Foi de bom coração que eu aceitei, porque desde pequeno ele falou que ia pegar esse caminho” recordou Saqiba, em português. “Quando tinha três, quatro anos, ele só queria armas, porque ele via como vivíamos em guerra.” Ao se despedir, contou Saqiba, seu filho “disse que não voltava mais, e não voltou mesmo”. Ela concluiu: “Ainda tenho dois, que vão seguir o mesmo caminho, se Deus quiser.”
“Perdi dois netos muito queridos”, disse Ramzia, de 78 anos. Hamid Suaidan, de 21 anos, primo de Ibrahim, cujos pais nasceram no Líbano, também morreu lutando pelo Hezbollah e foi enterrado ontem. Aparentemente, os dois atuavam em bases de lançamento de foguetes Katiusha, bombardeadas por Israel.
“Aqueles vagabundos israelenses, a gente estava andando na rua, e eles bombardeavam tudo”, prosseguiu em português a avó, que se mudou com o marido para o interior de São Paulo em 1960, e até hoje tem casa e dois filhos em Itapevi. “Nós perdemos nossa gente, mas, graças a Deus, eles perderam a guerra.” A casa vizinha à sua – em cujo andar de baixo mora a mãe de Ibrahim – foi inteiramente destruída, assim como boa parte das casas de Yatar, reduto do Hezbollah a 6 quilômetros da fronteira com Israel.
“Viu que os israelenses atacaram até nosso cemitério?”, perguntou Sara, de 44 anos, tia de Ibrahim e de Hamid, que como as outras irmãs que nasceram no Brasil se casou e se estabeleceu no Líbano. “Eles querem nos apagar duas vezes, porque sabem que, aqui, até os mortos, a terra, o capim são Hezbollah. Nós, mulheres, só não lutamos porque temos que criar nossos filhos para poderem lutar contra Israel.”
Sara, também nascida em Itapevi, explicou a serenidade da família: “Quem tem um mártir fica muito feliz com ele. Agora, a gente anda de cabeça bem erguida, porque tem um menino que morreu na guerra.” Famílias de mártires têm ajuda em dinheiro e os melhores hospitais e escolas, patrocinados pelo Hezbollah, que recebe dinheiro do Irã. Fotos do líder da Revolução Islâmica no Irã, Ruhollah Khomeini, decoram as entradas e saídas das cidades da região.
Um dos xeques presentes ao enterro passava consolando os parentes dizendo: “Nem mesmo o mundo inteiro vale uma gota de sangue de Ali”, referindo-se ao genro de Maomé e, na visão dos xiitas, seu sucessor. Os parentes e amigos cumprimentavam Ali Suaidan, o pai de Hamid: “Parabéns! Que bom para você que seu filho é um mártir.”
Um cheiro forte de corpos em putrefação dominava o ar. Ibrahim morreu há dez dias. Seu corpo, como os demais, aguardava o fim da guerra numa vala temporária em Tiro, para ser enterrado em Yatar.
Uma menina carregava um retrato emoldurado do líder do Hezbollah, Hassan Nasrallah, e chorava olhando para ele, como se buscasse consolo. “Eu amo Nasrallah”, disse Zena, de 37 anos, outra tia paulista de Ibrahim e Hamid. “Ele é um homem forte.” Ibrahim, que nasceu em Abidjã (Costa do Marfim), onde seu pai trabalhava, adorava futebol e sonhava conhecer o Brasil um dia. Já tinha até passaporte brasileiro. Mas não deu tempo.
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